Mikael e Gabriel


REVOLTA DA VACINA

Nicolau Sevcenko
1- Eram constituídas basicamente de dois agrupamentos. O primeiro, muito difuso, se compunha genericamente do núcleo de forças que ascenderam e se impuseram ao país durante a primeira fase do regime republicano, os governos militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto – sobretudo este último. Tratava-se primeiramente de jovens oficiais, formados nas escolas técnicas de preparação de cadetes, onde pontificavam as novas teorias científicas que propunham uma reorganização geral da sociedade. Essa reorganização se inspirava na teoria de Augusto Conte, o positivismo, o qual preconizava uma nova civilização industrial que, administrada por gerentes de empresas, se baseava numa legislação de proteção e assistência aos trabalhadores e era governada por uma ditadura militar.
2- O argumento do governo era de que a vacinação era de inegável e imprescindível interesse para a saúde pública. E não havia como duvidar dessa afirmação, visto existirem inúmeros focos endêmicos da varíola no Brasil, o maior deles justamente na cidade do Rio de Janeiro. Esse mesmo ano de 1904 atestou um amplo surto epidêmico: até o mês de junho haviam sido contabilizados oficialmente mais de 1 800 casos de internações no Hospital de Isolamento São Sebastião, no Distrito Federal, e o total anual de óbitos devidos à varíola seria de 4 201.
3-Em 5 de novembro de 1904, foi criada a Liga contra a Vacina Obrigatória, como reação à medida aprovada em 31 de outubro. Uma dentre muitas que se disseminaram na imprensa carioca, a charge ao lado mostra o senador Lauro Sodré e o personagem popular “Zé Povinho” contra o sanitarista Osvaldo Cruz e o presidente Rodrigues Alves.
4- Sua importância para os amotinados provinha de a Liga significar, naquele momento de irresolução, um núcleo aglutinador de energias e decisões práticas. Os líderes da Liga perceberam isso com clareza e procuraram lançar temerariamente a multidão na ação insurrecional, por meio de discursos inflamados que pretendiam levar o movimento às últimas consequências. Mas, uma vez precipitada a avalanche, a Liga perderia completamente qualquer meio de controle sobre a revolta que ajudara a desencadear.
5- OS TUMULTOS INICIAVAM-SE AINDA MAIS CEDO, E COM UM caráter ainda mais alarmante; naquele dia de repouso, domingo, dia 12, às 14 horas, estava literalmente tomada, pela multidão exaltada, a praça Tiradentes. Em vão, tentavam as autoridades e as patrulhas convencê-la de que deveria dispersar. É que estava anunciada para aquela hora, no gabinete do ministro da Justiça, uma reunião da comissão incumbida de assentar nas bases o regulamento da vacina obrigatória. Crescia o movimento de minuto a minuto, temendo-se acontecimentos graves. Vinha nessa ocasião da rua do Lavradio, num carro aberto ladeado pelo comandante da Brigada Policial, o chefe de polícia. Escoltava o veículo um piquete de cavalaria, e contornava a praça quando, ao passar em frente à Maison Moderne, rompeu intensa assuada. O carro começou a ser apedrejado. Cardoso de Castro, desassombradamente, de pé no veículo, ordenou, num gesto resoluto e enérgico, que o piquete carregasse.

6- O projeto de assalto ao poder estava sendo encabeçado pelos jacobinos e florianistas, mas ironicamente era financiado às ocultas pelos monarquistas, que haviam sido excluídos da política republicana e eram representados sobretudo pelo visconde de Ouro Preto, por Andrade Figueira, Cândido de Oliveira e Afonso Celso. Varela era o principal elemento de ligação entre os dois grupos, e o seu jornal, O Comércio do Brasil, ultra-agressivo e financiado pelos monarquistas, era o principal órgão de agitação do grupo conspirador.
7- NAQUELA MESMA MADRUGADA EM QUE SE CONSUMAVA POR FORMA tão
desastrosa o motim da praia Vermelha, já se reiniciavam, com dobrada violência, os choques sangrentos entre a turba agitada e os contingentes da força policial e do Exército que por toda a parte se moviam em operações arriscadas. O tropel da cavalaria em cargas violentas e o fragor dos tiroteios iam-se tornando familiares ao ouvido. pelo alferes Jovino Marques, avançando até a rua da Imperatriz [Camerino], havia
conseguido destruir a primeira trincheira. Dali por diante começavam os postos
avançados dos amotinados, que haviam se organizado militarmente. Em Porto Arthur
soavam cornetas transmitindo ordens. O calçamento de todo o bairro havia sido
revolvido a picareta. Árvores, postes telegráficos e de iluminação, ralos de sarjetas
haviam sido arrancados. Dentro das casas comerciais grupos comiam e bebiam
fartamente. O leito das ruas estava coberto de montões de garrafas, colchões, esteiras,
latas e restos de objetos incendiados.

8- Charge da época retrata Horácio José da Silva, o Prata Preta, um dos líderes da resistência
popular no morro da Saúde. Estivador e jogador de capoeira, atividade então proibida por lei, ele lutou até os últimos dias da Revolta da Vacina e, segundo a imprensa da época, foram necessários cinco homens da polícia e do Exército para prendê-lo. Não se sabe que destino teve.

Desde a data do seu início, em 15 de novembro de 1902, o governo de Rodrigues Alves foi
recebido com extrema frieza pela população do Rio de Janeiro. Ele representava inequivocamente a continuidade da administração anterior, do também paulista Campos Sales. E não nos esqueçamos da despedida estrepitosa que os habitantes da cidade lhe reservaram, quando ele passou suas funções ao sucessor. O ex-presidente foi vaiado fragorosamente, desde a saída do gabinete presidencial até a estação. Quase toda a Brigada Policial foi posta na rua para garantir o seu embarque. A assuada era recortada por provocações, insultos, zombarias, assovios e gestos ameaçadores. Pelo trajeto do subúrbio, o trem em que ele embarcara foi saudado com vaias, apitos e pedradas. Mais do que o homem, o que se procurava atingir com essa manifestação de repúdio era, evidentemente, um projeto de governo sentido como espúrio, faccioso e opressivo. E Rodrigues Alves era identificado com a continuidade dessa política impopular, numa cidade que votara maciçamente no candidato de oposição à hegemonia paulista, o republicano histórico, líder radical e um dos políticos de maior prestígio junto à população carioca, Quintino Bocaiuva.


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